A relação do artista plástico com a poesia é sempre peculiar, porque criativa. Seu talento radical exige uma ilustração literal, avessa à metáfora. Desse modo, a atividade do artista plástico e a do poeta guardam similaridade e um certo grau de paralelismo. Tal foi a relação de Carstens para com Homero, a de Cornelius e Delacroix para com o “Fausto” de Goethe, a de Flaxman e Genelli para com Dante: recriação de imagens que o poeta sugeria.
Há uma correlação análoga entre o romance “Bubu de Montparnasse”, de Charles Louis Philippe, e as litografias de Lasar Segall. O ponto de partida estético dos dois artistas é diferente. No caso de Philippe, da sua visão de um mundo racionalista, herdada da escola de Zola, fica iminente a fórmula desconsoladora do naturalismo imobilizante: Telle est la Vie —, um enfronhamento nas brenhas dos detalhes social e psicológico, com uma paixão pelo aversivo, que por vezes ameaça sufocar a atmosfera melancólica do bem e do amor. É esta a orientação ocidental, francesa, do século XIX (“Bubu” foi publicado em 1901). Segall não é apenas russo de nascimento. Talvez sua arte seja a mais russa, a mais sombria, a de maior coloração mística que a de qualquer outro artista. Ele busca sua origem nos campos da compreensão e do sentimento ilimitados, no mundo de Dostoievski. Não porque o tenha conhecido, mas porque ambos possuem o mesmo sangue e pelo fato de Segall fazer transparecer a milenar melancolia dos judeus russos. Essas características cristalizam-se nos seres singulares e nas tonalidades de cores de seus quadros. São comoventes sugestões simultâneas, e inexplicáveis, de uma vontade de viver e de uma fuga da própria vida. Segall versa sobre o naturalismo da temática de Philippe, a história de uma pobre alma maltratada, que se entrega a um gigolô, desejosa de salvar da ruína um homem bom e que finalmente é abandonada, indefesa, à brutalidade de Bubu, liberto da prisão.
Oriente e ocidente misticismo e racionalismo encontram-se aqui indivisivelmente juntos. Deste contato fecundo, entretanto, não se produz uma simples ilustração, mas crescem um sutil refinamento e uma tranqüilidade escamoteados no “Bubu’’ e surgindo com uma roupagem totalmente nova, envoltos no esplendor de um amor saudoso e repleto de comiseração. No entanto, não se trata de um aprimoramento do romance de Philippe. Incólume em sua estrutura cíclica, fechada, o romance está presente ali na íntegra. E é como se a atmosfera do ambiente de prostituição do bairro de Montparnasse se levantasse e ganhasse forma; como se as poucas personagens, purificadas no purgatório da misericórdia oriental, assumissem uma forma transcendental e se despojassem da erma casualidade e da crostra de sujeira da cidade grande, e se convertessem em exemplares de uma humanidade sofredora. Nós, rebentos do século XX, seres enlutados de uma época terrível, desejaríamos que fosse assim o destino da pobre pequena Berthe Métenier e de sua irmã Blanche, do bom Pierre Hardy e do sombrio homem de bem, Bubu. Assim desejaríamos ter vivido a história, como assim a vivem nossos artistas, ao interpretarem a obra de uma geração passada sob o signo do amor.
Jamais um Philippe, nem tampouco um Zola ou um Dubois-Reymond, teriam imaginado esta forma de representação. O espírito deve renunciar ao acaso da natureza, pois o naturalismo não pode prescindir do acaso obscuro. Este é o segredo daquele que cria do fundo da alma, que transforma os processos exteriores em vivências do coração. A representação das imagens não é uma caracterização de um retrato prisioneiro da forma, porém criação de tipos portadores da expressão; a ênfase está no que é essencial para a expressão. A cabeça, em detrimento do resto do corpo; o abandono de todo e qualquer ornamento, excetuando-se aqueles estritamente necessários à caracterização: a cama da moça, a rua do gigolô, as moedas como recompensa da pequena coquete. Assim, tudo quanto possa desviar o observador do foco central é eliminado. O centro de interesse é fortemente delimitado por meio da linguagem das linhas, que é igualmente interior e poderosa. A linguagem faz surgir a expressão no quadro, e é simplificada ao grau da monumentalidade. Esta é a arte de Segall. E diríamos pouco, se tentássemos vestir com palavras nossa convicção de que Segall não deu forma a qualquer história de Paris, porém a um sonho que teve.
Paul Ferdinand Schmidt
Bubu, 1921
álbum com 8 litografias sobre papel e apresentação de Paul Ferdinand Schmidt
Acervo Museu Lasar Segall – Ibram/Ministério da Cidadania